“Ninguém pretende colocar etiquetas com preços na natureza”

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Pavan Sukhdev Foto: worldwaterweek, CC BY 2.0



Pavan Sukhdev coordenou o relatório TEEB*, que desencadeia debates acirrados no mundo. O estudo pleiteia a valoração de serviços prestados pelos ecossistemas a fim de proteger a natureza de mais destruição. Nesta entrevista concedida a Barbara Unmüßig, Sukhdev se posiciona em relação à acusação de que esse conceito possa abrir portas para a comercialização da natureza.

Barbara Unmüßig: Senhor Sukhdev, em minha opinião, a Avaliação Ecossistêmica do Milênio da ONU foi um marco na luta pela proteção dos ecossistemas e da biodiversidade. O abrangente relatório TEEB que o senhor coordenou dá mais um passo rumo à valoração econômica da natureza. Poderia nos explicar por que considera isso necessário?
Pavan Sukhdev: Como se sabe, por trás do estudo TEEB há uma comunidade de vários especialistas, incluindo economistas, antropólogos sociais, ecologistas, biólogos, políticos, juristas e vários outros. É uma verdadeira comunidade pois todos esses especialistas dividem a certeza de que a falta de visibilidade econômica da natureza é um problema que pode gerar decisões equivocadas e compromissos errados – o que, por sua vez, acarreta decisões políticas e sociais equivocadas. O resultado é a destruição da natureza, dos ecossistemas, dos serviços dos ecossistemas e da biodiversidade.

Barbara Unmüßig: Tenho dúvidas quanto a essa abordagem. A madeira é comercializada, a água é comercializada e a biodiversidade é um mercado milionário quando se trata de plantas e genes para produtos farmacêuticos, cosméticos e alimentos. A natureza é utilizada em alto grau e é totalmente visível.
Pavkan Sukhdev: Mas isso não se aplica aos serviços prestados pelos ecossistemas e aos valores econômicos produzidos por eles, como a formação dos solos, a polinização, a disponibilização de água potável, a proteção contra tempestades e furacões. Todas essas funções são invisíveis, mas têm enorme valor em termos econômicos, pois sem elas a sociedade não poderia funcionar. No entanto, não têm visibilidade nos processos políticos. Atualmente, a economicidade garante ação política e os tomadores de decisão já começam a hesitar no momento em que lhes apresentamos argumentos que não tenham fundamentos econômicos. Isso não significa, porém, que queiramos colocar etiquetas com preços na natureza. Quem afirma isso não entendeu o relatório TEEB.

Barbara Unmüßig: O senhor. recomendaria atribuir valores econômicos à natureza e incorporá-la no cálculo do PIB?
Pavan Sukhdev: Poderíamos pensar nisso, pois revelaria aos tomadores de decisão o imenso equívoco cometido ao se supor que estes serviços prestados pelos ecossistemas possam não existir. Somados, podem chegar a 8%, 10%, 20% ou até 40% do PIB. No entanto, talvez seja mais importante fazer medições específicas, principalmente aquelas relacionadas com o PIB dos mais pobres. Os resultados são estarrecedores. Eles mostram o quanto os pobres, os camponeses, a população das florestas dependem das prestações de serviço dos ecossistemas. No caso da Índia, sobretudo na economia de subsistência, calculamos que esses serviços representem praticamente metade dos ingressos de cerca de 350 milhões de camponeses e populações das florestas. Na Indonésia, chegaríamos a 75%. E no Brasil, onde 25 milhões de pessoas vivem na floresta tropical da Amazônia, alcançaríamos 90%. Portanto, nos países em desenvolvimento, a natureza disponibiliza uma ampla gama de serviços para a sobrevivência dos mais pobres. Apesar disso tudo, não reconhecemos a sua relevância social e econômica. E é precisamente este o objetivo do relatório TEEB: levar o valor dos ecossistemas para a esfera política e social.

Barbara Unmüßig: Em vez disso, o estudo TEEB tem sido criticado por alguns governos, principalmente na América Latina, e por organizações da sociedade civil. Temem que o fato de atribuir preço à natureza possa escancarar as portas para a maior monetização e precificação da natureza. As pessoas recusam, não querem isso. O que o senhor tem a dizer?
Pavan Sukhdev: Falamos sempre em valorar, jamais em “precificar a natureza”. Queremos apenas que as pessoas compreendam a falta de visibilidade econômica da natureza e que descubram o quanto é importante reconhecer o valor dos serviços dos ecossistemas, integrando-as nas decisões. Quando vemos o que acontece em vários países da ALBA (Aliança Bolivariana para as Américas), constatamos que a natureza fica muitas vezes ao sabor de interesses comerciais e é destruída precisamente porque não se lhe atribui nenhum valor econômico. O fato é que em muitas partes a natureza é destruída em nome de “medidas desenvolvimentistas”, deixando-se de levar em conta o valor das prestações de serviço dos ecossistemas, como, por exemplo, a capacidade da floresta tropical úmida de influenciar positivamente o volume das chuvas e a agricultura na América Latina. Isso é ético?

Barbara Unmüßig: O que acontece se não for possível tornar as prestações de serviço dos ecossistemas mais rentáveis do que a utilização de terras para fins agrícolas? Como seria sua estratégia nesse caso? Se for pelo Banco Mundial, a plantação de palmeiras para extração de óleo ainda é mais rentável do que a proteção de florestas.
Pavan Sukhdev: Quem determina essa suposta rentabilidade das palmeiras não leva em conta os custos gerados pela perda das florestas. Nós apontamos para o fato de que você pode contabilizar a geração de capital financeiro, mas não pode ignorar os custos produzidos pela perda das florestas. Quem almeja a produção de bem-estar total não pode levar em conta apenas o lucro privado de empresas, mas deve considerar também os bens comuns que foram destruídos a fim de gerar esses lucros privados.

Barbara Unmüßig: Por que o senhor confia tanto nos mecanismos de mercado? E isso num tempo em que, segundo muita gente, o próprio mercado financeiro é o cerne do problema? Possivelmente, seria mais eficaz proteger as florestas combatendo o comércio ilegal de madeira e equipando melhor aqueles que podem proteger a natureza. Mas para isso infelizmente há pouco ou nenhum dinheiro.
Pavan Sukhdev: Os mercados não são nenhuma panaceia. Mercados não existem para resolver problemas sociais e o relatório TEEB afirma claramente que muitas soluções se baseiam em outros mecanismos, como regulação ou normas sociais. Aliás, estas também são soluções econômicas no sentido de que recebem valores sociais e econômicos, os valores das prestações de serviços dos ecossistemas e da biodiversidade. O que queremos é fazer com que a vida na Terra seja preservada e, com isso, também a base de sobrevivência das pessoas. Infelizmente, o estudo TEEB tem sido incompreendido nesse particular.

Barbara Unmüßig: As pessoas estão preocupadas em atrair empresas privadas e gente cujos verdadeiros interesses estejam no mercado, no comércio e na mercantilização. Ora, a História não mostrou que na maioria dos casos a comercialização da natureza gera desapropriações e expulsão das populações tradicionais? Como responde a essa preocupação?
Pavan Sukhdev: Essa preocupação já existe há muito tempo e esse tipo de situação já aconteceu. No meu país, existe uma empresa britânica chamada Vedanta Resources PLC que, a meu ver, aplicou métodos imorais para conseguir a permissão para penetrar em um território tido como sagrado por várias tribos. Os Niyamgiri Hills, em Orissa, são sagrados para essas comunidades. Portanto, seu valor é infinito. Empresas como a Vedanta exploraram esse ecossistema. Não existe nenhum mecanismo para atribuir valor à natureza considerada sagrada pelos membros da tribo dos Dongra Khond. Este é um dos principais motivos para o fato de já ter havido tantas perdas. Esse problema não existe só na Índia, mas no mundo inteiro.

Barbara Unmüßig: E assim voltamos à esfera da política. O relatório TEEB não estaria desviando a atenção da responsabilidade dos políticos? Como, em sua opinião, os políticos poderiam garantir que a atribuição de valor à natureza não vá novamente expulsar as populações tradicionais?
Pavan Sukhdev: Em vários países foram tomadas medidas de segurança que na maioria dos casos não são suficientemente eficazes. Isso porque quando se trata de políticas públicas, infelizmente o argumento usado é sempre a elevação do PIB. Por isso, fiquei tão contente ao saber que um país desenvolvido como a Noruega se prontificou a colocar US$1 bilhão à disposição para frear o desmatamento na Indonésia, introduzindo lá um modelo REDD+*, à semelhança do Brasil. Esperamos que a transformação será positiva. A ONU instalou um escritório, o UN Office of REDD-Plus-Coordination in Indonesia, cuja principal missão é assegurar que na Indonésia seja feito um modelo de REDD+ adequado, bem trabalhado, para que os habitantes e usuários tradicionais das florestas recebam uma contrapartida aos benefícios que as suas florestas trazem para o mundo inteiro: solos que contêm carbono e armazenam CO2. De fato, é preciso muito esforço e engajamento empresarial para fazer a mudança acontecer... Ou seja, quando você diz que o TEEB quer transformar a natureza em dinheiro, na verdade, trata-se de reverter esse processo.

Barbara Unmüßig: O sistema REDD é o exemplo do mecanismo baseado em mercado, e muitas esperanças são colocadas nele. Mas parece que o REDD não realiza o que muitos esperam. Para se criar um mercado para REDD, pelo jeito é preciso ter regras muito complexas, além de compromisso com amplos limites de emissões. Quais são, a seu ver, os motivos para o fato de que o REDD até hoje não funcionou direito?
Pavan Sukhdev: No fundo, isso se deve à estrutura do mecanismo. Quando falamos de REDD+, um argumento muito utilizado é que este mecanismo se refere principalmente ao carbono. Infelizmente, há outros serviços de ecossistemas que podem ser até mais importantes do que o carbono. A capacidade da floresta de fornecer madeira para produção de energia para as comunidades, de fornecer água potável e alimentos, como para os camponeses no Brasil, na Indonésia ou na Índia. Todas essas qualidades da floresta são mais importantes para as pessoas que vivem nelas do que a transformação de carbono para o mundo. Acredito que para REDD+* deve ser feito um modelo que funciona de baixo para cima, e não de cima para baixo. Na minha opinião, deve começar com a população local, com aquilo que consideram importante no seu ecossistema.

Barbara Unmüßig: Temo que com essas iniciativas baseadas no mercado falamos mais com pessoas que nao têm nenhum interesse nesses modelos “de baixo para cima”. É tarefa da política – nos nívies local e nacional – criar as condições adequadas. O que sugere na condição de responsável por mecanismos como REDD+ e sua concretização?
Pavan Sukhdev: Certamente precisamos reconhecer que os serviços da natureza de que estamos falando não podem se restringir apenas ao carbono. A capacidade das florestas de criar uma base de subsistência para a população local é muito mais importante do que o carbono, do que a proteção do próprio país, do que interesses comerciais.

Barbara Unmüßig: A abordagem financeira da natureza está na boca do povo e irrita muita gente. Um dos assuntos são os derivativos*. Muitos exemplos, como o da empresa irlandesa Celestial Venture, que comercializa emissões, mostram que cada vez mais instrumentos dos mercados financeiros são utilizados para ganhar dinheiro e especular ainda mais sobre a natureza. O que diz a respeito das críticas de que o relatório TEEB estaria facilitando essa tendência?
Pavan Sukhdev: Bem, penso que empresários gostam de buscar possibilidades mais amplas de ganhar dinheiro. E se utilizarão de qualquer uma que apareça pela frente. Mas, falando abertamente, é o mesmo tipo de gente que há cem anos corrompe funcionários governamentais para penetrar em regiões de tribos a fim de destruí-las para fins de mineração ou de desmatamento. Nada mudou nesse ponto.

Barbara Unmüßig: E o que sugere?
Pavan Sukhdev: Acho que precisamos de um novo tipo de empresa, que apelidei de corporation 2020. Um tipo de empreendimento privado cujos objetivos estejam em harmonia com as metas da sociedade. Na minha opinião, temos no máximo dez anos para isso. Acredito sinceramente que o ano de 2020 seja o prazo fatal.

Barbara Unmüßig: Repetindo: para muitos, a atribuição de valores financeiro à natureza está fortemente ligada ao estudo TEEB e ao conceito da valoração econômica da natureza. O que diz disso?
Pavan Sukhdev: O objetivo do estudo TEEB é reconhecer os valores – infelizmente pouco considerados – da natureza e incorporá-los às decisões de ordem política e econômica. Não se trata de forma alguma de colocar etiquetas com precos na natureza. Essas são expressões que nosso grupo jamais empregou. Para finalizar, quero dar um exemplo: constatamos que a proteção contra tempestades e furacões em regiões costeiras e manguezais é muito mais eficaz quando identificamos todos os efeitos positivos dessas novas plantações. Seu valor é muito mais elevado do que o valor de um muro de contenção de concreto armado, pois os manguezais contribuem para a recuperação dos cardumes de peixe, o que, por sua vez, assegura o abastecimento de alimentos em tempos difíceis. Os manguezais geram lenha, quer dizer, energia em tempos de escassez energética. Tudo isso tem consequências diretas para as pessoas. Chamo isso de investimento na infraestrutura ecológica, ou seja, na natureza. Para tornar a pobreza coisa do passado, precisamos fazer da natureza o nosso futuro.


Barbara Unmüßig é presidenta da Fundação Heinrich Böll.

Pavan Sukhdev é o coordenador do relatório TEEB*. Formado em Física e Economia, é chefe da Divisão Mercados Globais do Deutsche Bank na Índia.

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* TEEB: A iniciativa The Economics of Ecosystems and Biodiversity (A Economia dos Ecossistemas e da Biodiversidade) nasceu em 2007 durante o encontro de ministros do Meio Ambiente do G8+5 em Potsdam, na Alemanha, e começou a funcionar em 2008 sob coordenação do executivo Pavan Sukhdev, do Deutsche Bank. O objetivo era abarcar o valor econômico dos serviços dos ecossistemas e da biodiversidade, a fim de protegê-los de mais destruição e ações predatórias. O relatório final do estudo foi lançado em 2010 durante a 10ª Conferência das Partes (COP 10) da Convenção sobre Diversidade Biológica em Nagoya, no Japão.

*A Avaliação Ecossistêmica do Milênio (Millennium Ecosystem Assessment, MA) é um programa de pesquisas sobre mudanças ambientais e tendências para as próximas décadas, encomendado em 2001 pelo então secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan. Até 2005, 1.360 especialistas do mundo inteiro produziram uma análise científica sobre o estado e o desenvolvimento do ecossistema e seus serviços. Dos 24 ecossistemas analisados, 15 (60%) revelaram um estado de destruição avançada ou contínua. Os especialistas também apresentaram uma base científica de como fortalecer e conservar esses ecossistemas.

*REDD: O modelo Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (Reducing Emissions from Deforestation and Degradation) considera que as florestas são estoques de carbono para ciclos globais. O modelo prevê medir emissões geradas pelo desmatamento e atribuir valor a elas. Os defensores do mecanismo REDD esperam que isso sirva de incentivo para evitar futuros desmatamentos. A ideia é preservar principalmente florestas boreais e tropicais úmidas do hemisfério Sul. O REDD+ leva em conta programas de conservação e manejo florestal.

*Derivativos: Títulos derivados originalmente de ações e que especulam com alterações de preços no futuro. Geralmente se trata de negócios em que, num determinado prazo, um outro papel ou outra mercadoria devem ser comprados ou vendidos a um determinado preço. A incerteza das tendências do mercado permite, assim, altos ganhos ou grandes perdas. Derivativos negociados em bolsas ou fora de bolsas também podem ser usados como garantia para outros negócios em bolsa ou para créditos. Quando esses derivativos perdem seu valor subitamente, afetam também o negócio que deveriam garantir.